Arqueólogos e curiosos em geral costumam se perguntar como os habitantes do Egito conseguiam cortar com precisão milimétrica grandes blocos de rocha para construir pirâmides.
Desconsiderando as hipóteses de que eram auxiliados por ETs, resta a constatação de que os habitantes da região, há milhares de anos, tinham técnicas bastante específicas. Seja qual tecnologia usassem, ela se perdeu. Na história humana, a evolução costuma se dar com perdas só notáveis quando tarde demais.
Mas talvez nesse exato momento estejamos vivendo um desses instantes de morte tecnológica – e poder observá-la ao vivo pode ser tão fascinante quanto triste.
A perda em questão é de uma tecnologia que começou a ser gestada no fim dos anos 1970 – a do MP3. O formato de arquivo digital que mudou tudo no cenário musical teve sua morte anunciada neste mês de maio de 2017 – 22 anos após seu nascimento oficial, no nem tão longínquo ano de 1995.
O anúncio do possível fim desse jovem incendiário que balançou as estruturas da indústria da música foi feito pelo Fraunhofer IIS, o instituto de pesquisas alemão que é pai e mãe do MP3. Aliás, bem mais pai: a equipe de pesquisadores que o criou não tinha mulheres.
Em um comunicado nada emocional, o Fraunhofer disse que a última patente referente ao MP3 se esgotou em abril – e que não dará mais suporte ao formato, agora livre de copyrights.
Na prática, quer dizer que mudanças que impactem o funcionamento do MP3 não implicarão em adaptações “oficiais” no conjunto de software feitas por seus pais. Só isso. Pode não parecer muito, mas imagine que surja um novo sistema operacional totalmente diferente de tudo que existe. Pronto.
O MP3 não terá mais uma casa onde ir para se adaptar. Isso é ruim. Por outro lado, com patentes livres, qualquer um poderá mudar o padrão para adaptá-lo a um novo ambiente. Mas isso significa bagunça potencial. Quem usa computador com variantes do Linux sabe o que significa. Se cada um faz o que quer, por vezes as coisas não funcionam muito bem.
Uma coisa é certa: o mundo não foi o mesmo após o nascimento do MP3 e não será o mesmo após seu fim. Quem não viveu seu início, em 1995, não pode imaginar o que esse punhado de linhas de código significou.
A possibilidade de gravar horas de música em arquivos digitais pequenos e portáveis, usando apenas um PC e um software como o histórico Nero Burning ROM, e depois transitar livremente esses arquivos pela então nascente internet foi algo tão impactante quanto a invenção do disco de áudio por Thomas Edson. Se antes a música só podia ser usufruída crua, ao vivo, Edson permitiu que ela fosse fixada em um dispositivo móvel, o disco. Mas isso ainda exigia equipamentos e movimentação física do vinil – ou de fitas, CDs e outros invólucros físicos.
O MP3, que demorou quase 20 anos para ser desenvolvido pelos alemães do Fraunhofer, mudou essa lógica. A mobilidade se tornou virtual: de um só ponto no espaço-tempo era possível duplicar infinitamente uma música. Antes, a duplicação só se dava no um a um: eu copio um vinil em uma fita casette e ponto.
Depois do MP3, os conteúdos musicais se democratizaram. Músicos deixaram de depender exclusivamente, para a distribuição, da indústria fonográfica, e consumidores sem dinheiro para adquirir um CD ou vinil puderam ter acesso a seus conteúdos. Sim, isso significou pirataria a princípio – mas hoje é o que permite a você comprar uma faixa musical por poucos reais e tê-la na hora em seu celular ou computador.
Essa ideia já estava na cabeça dos pesquisadores que trabalharam no projeto do MP3. “Nossa visão, lá pela metade dos anos 90, era de que qualquer pessoa um dia poderia levar suas músicas em um dispositivo portátil”, relembra Harald Popp, um dos inventores do formato. “Mas naquela época muitos especialistas diziam que jamais existiria um aparelho portátil capaz de acomodar a complexidade do MP3.”
No fundo, estes descrentes não só duvidaram do MP3 como também não conseguiram pressentir toda uma indústria criada a partir dele para gerar novas maneiras de usufruir música. Empresas pioneiras como a Nero, fundada em 1988 e ainda hoje atuando no mercado de multimídia, ou mesmo fabricantes que usam o formato em seus equipamentos de áudio até hoje, como a Sony, não teriam avançado tanto quanto avançaram sem o MP3.
O que acontece se o formato “MP3” desaparecer?
Mas, e agora? O que ocorrerá se o MP3 desaparecer assim como sumiram as técnicas de cortar rochas dos antigos egípcios? Bem, o fato é que embora revolucionário, o MP3 vem a cada dia perdendo espaço para arquivos mais interessantes – em tamanho ou em qualidade do áudio. Formatos como AAC e FLAC, já suportados po rsoftwares de transcodificação e de execução, oferecem ambas as qualidades. Seus arquivos são menores e o som, melhor.
O AAC, aliás, é filho dileto do MP3: foi criado pela turma da MPEG, entidade mundial que congrega fabricantes para criar padrões globais. Não por acaso, a MPEG foi, a partir do fim dos anos 80, uma das envolvidas na criação do MP3 – tanto que a sigla resume o nome completo do formato, MPEG Audio Layer-3. Ou seja, o MP3 pode até morrer – mas permanece em seu descendente. Ainda bem.